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A sociedade do cansaço e o abandono afetivo das pessoas idosas

A virada do milênio trouxe para o mundo uma nova forma de enxergar as relações, sendo elas muitas vezes mediadas pelos smartphones. A aposta da ciência é de que essa nova modalidade de comunicação, mais rápida e mais eficaz, seria capaz de promover uma maior conexão entre as pessoas e gerar mais envolvimento nas demandas mundiais, como maior acesso ao jornal em tempo real e menor distância para manter contato com quem pode estar muito longe fisicamente. Porém, 25 anos depois da virada do milênio, nos deparamos com outro cenário: uma sociedade do cansaço, hiper estimulada, com total dispersão da atenção, baseada em vínculos “líquidos” e marcada pelo abandono afetivo das pessoas idosas.

Não se preocupe. Todos esses termos, que talvez ainda sejam desconhecidos para você, serão explicados na matéria de hoje do blog. Vamos entender os impactos atuais da nossa cultura da hiper conectividade.

O que é a sociedade do cansaço?

O filósofo Byung-Chul Han parte de uma observação que bate na nossa cara: o modo como o poder atua mudou. Nós não somos mais, de maneira primária, sujeitos controlados por regras externas. Hoje em dia nós nos auto exigimos, somos nós mesmos que cobramos performance permanentemente. É essa passagem, que Han chama de “transição da sociedade disciplinar para a sociedade do desempenho ou do cansaço”, que explica muita coisa do nosso desgaste.

Na sociedade disciplinar havia limites claros, havia proibições, punições e um senso de ordem que vinha de fora. Isso não era agradável, mas dava um contorno ao sofrimento. Agora o que aparece é diferente. O imperativo é positivo: você pode, você consegue, você deve produzir. Essa liberdade prometida vira obrigação sorrateira, onde a auto exploração se apresenta como conquista pessoal. o resultado aparece como fadiga, ansiedade e formas novas de exaustão.

A tecnologia e a cultura do imediatismo alimentam esse quadro: tudo é user friendly, tudo promete facilitação, mas a facilidade traz uma expectativa de disponibilidade total: trabalho 24 horas, respostas imediatas, redes sociais que pedem atualização constante. A sensação é de que devemos estar sempre conectados, sempre rendendo, sempre produzindo. Para além disso, diante das redes sociais, tudo passa a ter um caráter performático, todas as ações: exercício físico é uma performance de desempenho físico, por exemplo, relações amorosas realistas, sempre com um toque que faz um mix entre real e virtualmente aceito.

Diante desse cenário, as relações passam por novas concepções, adotam novos moldes para se estabelecer e os vínculos passam a ser mais superficiais, baseados apenas na performance de parecer ser e não se apegar tanto à verdadeira essência da relação. O afeto passa a competir com agendas cheias, com metas diárias, com a pressão da visualização e do retorno imediato, com o medo das ligações por telefone. Conseguir um tempo livre de trabalho para poder usufruir das relações precisa levar em conta o espaço: é instagramável? Eis a questão.

Para o autor do livro “Sociedade do Cansaço”, vivemos hoje um tempo de doenças psicológicas mais desenvolvidas, ligadas ao nosso autodesenvolvimento e impactadas diretamente pela hiper conectividade nas redes sociais, pelo excesso de comparação da vida real com a vida performática apresentada nas redes sociais. Para o autor, a grande questão é que diferente da longa trajetória histórica do mundo, essa é a primeira vez em que o inimigo não é externo (pragas, guerras, pandemia), mas sim interno, e por isso a reação coletiva é mais lenta e mais tímida.

Diante disso, o impacto direto fica sobre a a ponta mais frágil das relações: os idosos. quando a cultura valoriza rapidez e eficiência, o cuidado afetivo fica em último lugar. O idoso muitas vezes não precisa só de suporte físico, precisa de presença, de tempo, de escuta, mas a nossa agenda saturada empurra o afeto para segundo plano. É nessa fenda que cresce o abandono afetivo.

A proposta de Han não é tecnicista. Ele não diz apenas para gerenciar melhor o tempo, pois o convite é mais profundo. Precisamos recuperar formas de negatividade, aceitar limites e tolerar o silêncio. O ócio volta a ser um conceito importante, não como preguiça, mas como espaço para pensar, ouvir e cuidar. A solidariedade e a presença deixam de ser apenas valores e viram práticas essenciais para enfrentar a lógica do desempenho.

 

Doenças e transtornos associados à sociedade do cansaço

A sociedade do cansaço não cria só sensação de fadiga. Ela muda a forma como adoecemos. O que aparece com mais frequência são quadros ligados ao estresse crônico, à exaustão emocional e a alterações do humor. Entre os termos que mais ouvimos estão burnout, depressão, ansiedade e exaustão crônica. Cada um tem características próprias, mas convivem e se alimentam no mesmo terreno: a pressão por rendimento, a disponibilidade permanente e a perda do tempo de pausa.

Burnout é uma síndrome ligada ao trabalho e resultado de estresse crônico que não foi bem gerido. Os sinais clássicos são três: exaustão intensa, distanciamento mental do trabalho e sensação de perda de eficácia profissional. É importante lembrar que a Organização Mundial da Saúde classificou burnout como um fenômeno ocupacional, não como uma doença mental em si. Isso ajuda a enquadrar o problema como resultado de condições de trabalho e não apenas como falha individual.

Depressão e ansiedade aparecem com força no mesmo cenário. Estudos e relatórios mostram que os casos de ansiedade e depressão cresceram de forma significativa nos últimos anos, em parte impulsionados por eventos como a pandemia de covid-19, que provocou um aumento estimado de 25% na prevalência desses transtornos no primeiro ano. Esse salto revela como choques sociais ampliam vulnerabilidades já presentes na cultura do rendimento e do imediatismo. Além disso, análises mais amplas documentam um aumento sustentado da prevalência de transtornos depressivos nas últimas décadas.

A relação entre burnout, depressão e ansiedade é complexa. Pesquisas apontam que não se trata de trocarem nomes, mas de construções distintas que se sobrepõem. Burnout tem um gatilho ocupacional mais claro. Depressão e ansiedade têm alcance mais amplo e critérios diagnósticos próprios. Ainda assim, a convivência desses quadros aumenta o sofrimento e a incapacidade funcional e pode elevar riscos sérios, inclusive risco suicida em contextos de sofrimento prolongado. Por isso é arriscado tratar tudo como simples cansaço. É preciso avaliação clínica e cuidado direcionado.

Existem outras manifestações comuns na sociedade do cansaço que nem sempre são classificadas como transtorno, mas que deterioram a vida cotidiana. Insônia, queixa de memória e de concentração, dores musculares sem causa orgânica evidente, irritabilidade e apatia são sinais frequentes. Essas queixas somáticas complicam o diagnóstico porque costumam ser tratadas separadamente, sem olhar para o padrão mais amplo de exaustão. Quando não se reconhece o padrão, a ajuda tende a ser fragmentada e menos eficaz.

Para quem cuida de idosos ou trabalha em ILPI, a recomendação é olhar o conjunto e não apenas o sintoma imediato. Nem todo cansaço é burnout e nem toda tristeza é depressão, mas todos esses quadros se tornam mais graves quando o vínculo afetivo e a rede de apoio enfraquecem. Identificar cedo os sinais, oferecer presença e encaminhar para suporte adequado são medidas que reduzem sofrimento e previnem agravamentos.

A mensagem é dupla. Por um lado precisamos de políticas e práticas que reduzam fatores de risco: melhores condições de trabalho, controle do tempo de trabalho e estratégias comunitárias de engajamento. Por outro lado precisamos de ações concretas de cuidado no nível familiar e institucional: visitas consistentes, escuta ativa e acompanhamento clínico quando necessário. A sociedade do cansaço adoece corpos e vínculos. Cuidar é a melhor resposta.

Qual o papel da ILPI para cuidar das pessoas idosas na sociedade do cansaço?

Uma ILPI é mais do que um lugar para dormir. É uma instituição residencial destinada a pessoas com 60 anos ou mais, com ou sem suporte familiar, que deve garantir liberdade, dignidade e cidadania. As normas que orientam funcionamento, estrutura e segurança foram atualizadas nos últimos anos e definem responsabilidades técnicas e assistenciais para esses espaços.

No plano legal a ILPI tem obrigações claras. Ela deve celebrar contrato de prestação de serviços com a pessoa idosa. Abandonar idosos em instituição é crime e a instituição está sujeita a fiscalização pelos conselhos municipais, pelo Ministério Público e pela vigilância sanitária. Isso significa que a ILPI não pode se eximir da responsabilidade pelo cuidado afetivo e pela proteção dos direitos dos residentes.

Na prática o papel da ILPI passa por três eixos que se complementam:

  • Primeiro: O cuidado básico e clínico, que inclui alimentação, higiene, administração de medicamentos e acompanhamento de condições crônicas.
  • Segundo: O cuidado psicossocial, que envolve avaliação de saúde mental, estímulo cognitivo e atividades que mantenham laços sociais.
  • Terceiro: A mediação e a manutenção dos vínculos familiares, ou seja, incentivar visitas, facilitar contatos e incluir a família nos planos de cuidado. Esses três eixos são essenciais para evitar que a institucionalização vire sinônimo de abandono.

A sociedade do cansaço traz um desafio adicional. Famílias ocupadas, rotinas aceleradas e a pressão por produtividade reduzem o tempo de presença. Em consequência aumenta a demanda para que a ILPI não só cuide de aspectos físicos mas também suple a falta de afeto. Isso exige da instituição ações deliberadas de promoção de vínculo emocional e de escuta qualificada, porque a ausência afetiva piora quadros de depressão, isolamento e declínio funcional. Estudos mostram que a institucionalização pode tanto enfraquecer quanto, se bem-feita, fortalecer vínculos familiares e redes de apoio.

Outro ponto realista é a condição da própria equipe. Cuidadores e profissionais de ILPI também estão sujeitos a sobrecarga e desgaste. Profissionais exaustos não conseguem oferecer presença afetiva de qualidade. Por isso cuidar do cuidador é parte do papel institucional. Treinamento continuado, supervisão, escalas que permitam descanso e programas de saúde ocupacional reduzem a rotatividade e melhoram o cuidado afetivo prestado aos residentes.

O que uma ILPI bem orientada pode fazer na prática? Primeiro construir rotinas que valorizem a rotina afetiva e não apenas a eficiência técnica. Criar momentos diários de escuta individual. Promover atividades em pequenos grupos que favoreçam conversas e memórias. Implementar visitas mediadas com a família e facilitar chamadas de vídeo quando a visita presencial não for possível. Ter protocolos para identificar sinais de abandono afetivo e de depressão, com encaminhamento rápido para suporte clínico. Além disso integrar programas intergeracionais, parceria com escolas e grupos comunitários, para trazer diversidade de relações e reduzir o isolamento.

Idosos da geração do cansaço: quais as diferenças e como lidar?

A expressão geração do cansaço aponta para quem viveu e vive sob o imperativo de desempenho. Entre as pessoas idosas vemos perfis diferentes por causa das trajetórias de vida. Há quem tenha envelhecido tecnicamente antes da avalanche digital e mantenha ritmos mais lentos. Há quem se adaptou às tecnologias e ao mercado estendido e chega à velhice com histórico de trabalho intenso e sobrecarga. E há os que, por fragilidade social, ficam mais expostos ao isolamento num contexto em que parentes e cuidadores estão sempre ocupados. Essas diferenças mudam sinais, expectativas e estratégias de cuidado.

Do ponto de vista clínico a fadiga em idosos pode se apresentar de modo diferente do que em adultos mais jovens. A queixa principal muitas vezes não é “cansaço” declarado, mas perda de apetite, queixas somáticas, redução das atividades e declínio funcional. Por isso é comum subdiagnosticar depressão e esgotamento em quem tem mais idade. Estudos[1] mostram que a fadiga é uma queixa prevalente entre idosos e que pode afetar função física, cognição e qualidade de vida. Reconhecer a forma como os sintomas aparecem é o primeiro passo para agir.

Há também evidência de que a fadiga percebida tem significado prognóstico. Em estudos epidemiológicos[2], níveis elevados de fatigabilidade em idosos estiveram associados a risco maior de piora funcional e até de mortalidade precoce. Isso transforma a fadiga em sinal clínico importante, não apenas em incômodo passageiro, por isso a avaliação precisa ser cuidadosa e incluir causas médicas, efeitos de medicamentos e fatores psicossociais, como abandono afetivo e isolamento.

Outra diferença relevante é a resiliência relativa de alguns grupos idosos. Em várias pesquisas mais recentes[3] os adultos mais velhos reportaram menos burnout do que adultos jovens, possivelmente por estratégias melhores de regulação emocional e por expectativas diferentes sobre trabalho e sucesso. Ainda assim, idosos que passaram por grandes exigências profissionais e cuidados intensos na vida ativa podem chegar à velhice com “acúmulo de desgaste” — e aí a sobrecarga antiga interage com a falta de vínculo presente. É preciso avaliar a história de vida para entender riscos atuais.

 

Na sociedade do cansaço, cuidar é estar presente. Nossas unidades do Terça da Serra são espaços onde o tempo volta a ter valor e o cuidado é presença, não pressa. Agende uma visita na unidade mais próxima de você e conheça de perto como transformamos o cuidado em vínculo.

 

[1] Fonte: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/41033241

[2] Fonte: https://www.upmc.com/media/news/012422-glynn-fatigability-mortality

[3] Fonte: https://www.frontiersin.org/journals/public-health/articles/10.3389/fpubh.2024.1374484/

 

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