Em maio de 2024 o NHS anunciou o lançamento do Cancer Vaccine Launch Pad[1] e tratou o primeiro paciente com uma vacina personalizada desenvolvida para o tumor daquela pessoa — um marco dentro do sistema público de saúde inglês. O programa pretende acelerar o acesso a vacinas neoantigénicas personalizadas em ensaios clínicos e ampliar o atendimento a milhares de pacientes.
Na matéria de hoje do blog nós iremos abordar sobre o que consiste essa vacina, quais são os estudos já feitos com ela e quais são as perspectivas para os pacientes no futuro.
O que é exatamente a vacina personalizada contra o câncer?
Em maio de 2024 o NHS England lançou uma iniciativa inédita chamada Cancer Vaccine Launch Pad (CVLP), que marca um momento histórico no acesso público à inovação oncológica. Na prática: o CVLP é uma plataforma nacional que vai conectar pessoas com cancro que estão em tratamento no sistema público inglês às terapias de vacina personalizada em ensaios clínicos — ou seja, vai permitir que pacientes sejam rapidamente triados, testados e encaminhados para centros participantes, de forma mais ágil do que os processos convencionais.
O primeiro paciente já foi tratado com uma vacina personalizada para o seu cancro do cólon, fruto dessa iniciativa.
Outro dado importante: o NHS projeta chegar a até 10.000 pacientes no Reino Unido até 2030 através desta plataforma.
Para entender por que isso é tão relevante, vale destacar três aspectos:
- Escala do sistema público de saúde: o NHS, como sistema nacional de saúde, tem capacidade de mobilização, rede de hospitais e dados que poucos sistemas privados possuem, o que permite colocar essa inovação numa escala populacional (“em massa”), não apenas em centros de excelência isolados.
- Triagem e “match-making” de forma sistemática: o CVLP funciona como um serviço de “match” entre o paciente, o tipo de tumor, o perfil genético e o ensaio disponível — o que significa que não depende apenas do paciente ou do médico local descobrirem por acaso o estudo, mas da estrutura institucional organizada.
Transição da pesquisa para a prática clínica pública: embora ainda se trate de ensaios clínicos, o fato de o NHS integrar isso no seu plano de tratamento representa uma ponte entre inovação de ponta e atendimento de rotina, com implicações de equidade e acesso que importam muito para quem cuida de pessoas idosas ou em sistemas mais vulneráveis.
Em suma: esse anúncio não é apenas mais um ensaio disponível: é uma institucionalização da vacina personalizada contra o câncer dentro do sistema público, com encaminhamento organizado, financiamento e meta de impacto amplo. Para nós que trabalhamos com cuidados, envelhecimento e equidade, essa notícia abre uma nova lente de esperança, mas também de reflexão sobre como sistemas de saúde públicos em outros países (como o nosso) poderão responder e traduzir essa inovação com justiça.
Como funcionam essas vacinas personalizadas?
Estas vacinas contra o câncer personalizadas, frequentemente chamadas de vacinas de neoantígenos, operam com um princípio bastante inovador, porém, ao mesmo tempo, cada vez mais compreensível — mesmo para quem não é pesquisador: aprendemos hoje que cada tumor carrega mutações próprias, o que cria “etiquetas” exclusivas (os neoantígenos) que o sistema imunológico normal não reconhece como inimigo. A estratégia, então, é detectar essas etiquetas e “treinar” o organismo para atacá-las.
O processo em linhas gerais segue estas etapas:
- Sequenciamento do tumor e análise genética: Quando um paciente é identificado para o estudo, retira-se uma amostra do tumor ou do DNA tumoral, que é sequenciada para identificar mutações específicas (os neoantígenos) que não estão presentes nas células normais do paciente. Esse perfil genético é comparado com o genoma “saudável” para definir o conjunto mais promissor de alvos. Estudos como o de Ott et al.[2] – Personalized Neoantigen Vaccines for Cancer, Nature, 2023 demonstraram que é possível montar vacinas com múltiplos neoantígenas por paciente.
- Desenvolvimento da vacina personalizada: Com base nesse perfil, constrói-se uma vacina que pode ser de diferentes tipos (por exemplo, RNA mensageiro, peptídeos sintéticos ou vetores virais) que contém os neoantígenos selecionados. A produção é “única” para aquele paciente, o que exige rapidez, precisão e processos regulatórios rigorosos.
- Administração e ativação imunológica: O paciente recebe a vacina que estimula as células do sistema imune (linfócitos T, em particular) a reconhecerem os neoantígenos como alvos e a gerar resposta específica: expansão de células T-CD8/impulsionamento de memória imunológica, para que o corpo passe a “ver” as células cancerosas como inimigas.
- Monitoramento e combinação terapêutica: Após a vacinação, o paciente é monitorado para resposta (mensuração de células T específicas, imunofenotipagem, imagens de tumor) e muitas vezes a vacina vem combinada com outras terapias (como inibidores de checkpoint, quimioterapia ou radioterapia) para melhorar o efeito. Relatórios da Cancer Research UK[3] apontam que essa combinação já mostra resultados promissores, embora seja ainda cedo para transformações radicais.
- Desafios operacionais – Tempo de produção, custo, logística da entrega, heterogeneidade tumoral (nem todas as mutações geram resposta eficaz), efeitos colaterais e mensuração de benefícios a longo prazo continuam como pontos a serem resolvidos no uso em larga escala.
Para o sistema público como o National Health Service, a tradução desse mecanismo para atendimento em rotina significa montar infraestrutura de sequenciamento, parcerias com indústria (como BioNTech), laboratórios de vacina personalizada, além de monitoramento pós-tratamento. Mesmo com esses desafios, o fato de o NHS embarcar nessa via mostra um compromisso com a personalização da oncologia — e abre caminho para que as terapias, no futuro, deixem de ser “uma-tamanho-serve-todos” para se tornarem “um-paciente-por-vez”.
Quando pensamos no cuidado de pessoas idosas, ou em contextos vulneráveis, essa mudança de paradigma nos convida a pensar também em acesso, equidade e em como ofertar esse tipo de tratamento com escuta, conhecimento e respeito às trajetórias de vida.
Benefícios e limites das vacinas personalizadas contra o câncer
As vacinas personalizadas contra o câncer estão entre as inovações mais promissoras da oncologia moderna. Um dos dados mais citados refere-se ao ensaio da mRNA‑4157/V940[4] em combinação com Pembrolizumab (Keytruda) para pacientes com melanoma ressecado de alto risco: o resultado mostrou uma redução de cerca de 44% no risco de recidiva ou morte em comparação com o tratamento com pembrolizumab sozinho. Esse número traduz uma esperança concreta: para alguns pacientes, a vacina personalizada pode representar um avanço significativo.
Benefícios concretos
A resposta imune-alvo: vacinas personalizadas baseadas em neoantígenos do tumor conseguem ativar linfócitos T específicos, preparados para reconhecer mutações exclusivas das células cancerosas. Estudos[5] mostram que em bom número de pacientes, essas respostas são detectáveis e duradouras.
Potencial para prevenir recidivas: No cenário adjuvante (ou seja, após tratamento inicial/surgimento do tumor), ao “ensinar” o sistema imune a reconhecer as células residuais cancerosas, o tratamento abre uma via de “segurança extra”. Por exemplo, estudo[6] em carcinoma de células renais mostrou ausência de recidiva em 9 pacientes em seguimento de 40 meses.
Evolução da tecnologia mRNA/neoantígena: A utilização de plataformas avançadas[7] (mRNA, peptídeos, sequenciamento genético, IA para seleção de alvos) torna possível fabricar vacinas feitas “sob medida” para cada tumor.
Limites que merecem consideração
Não é cura garantida para todos: Mesmo com a redução de 44%, ainda há pessoas que recidivam ou não respondem. A heterogeneidade tumoral, mutações “escapam” ao sistema imune ou não geram resposta adequada.
Produção e logística complexas: Identificar os neoantígenos, fabricar a vacina personalizada, administrar e monitorar exige infraestrutura significativa — desafios de custo, tempo, regulamentação.
Acesso e evidência em larga escala ainda são limitados: Muitos estudos são fase 1 ou fase 2, grupos pequenos, com seguimento ainda curto em comparação à vida útil dos pacientes idosos ou com múltiplas comorbidades.
Mesmo com tratamento de ponta, não dispensa hábitos saudáveis: Vacinas personalizadas ajudam, mas não substituem práticas fundamentais como alimentação equilibrada, atividade física regular, evitar tabaco, consumo moderado de álcool, monitoramento médico. O tratamento de câncer sempre será mais completo quando integrado à promoção da saúde e ao estilo de vida.
É muito tentador ver uma nova “vacina milagrosa” como solução única, especialmente quando o cuidado com pessoas idosas e vulneráveis nos sensibiliza para esperança. Mas é preciso manter os pés no chão: a inovação médica raramente reduz sozinha as desigualdades em saúde ou garante resultados ótimos sem contexto. É responsabilidade do sistema de saúde, dos profissionais (como nós que atuamos em gerontologia social) e das redes de cuidado que cada pessoa tenha acesso não apenas à tecnologia, mas a escuta, acompanhamento emocional, rede de suporte, educação em saúde e ambiente de vida que favoreça a prevenção. O investimento em imunoterapia personalizada é vital, mas tão essencial quanto isso é cultivar ambientes saudáveis, comunidades solidárias, informação acessível, equidade no cuidado e protagonismo dos pacientes/idosos em suas próprias trajetórias.
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[1] Fonte: https://www.england.nhs.uk/2024/05/thousands-of-nhs-patients-to-access-trials-of-personalised-cancer-vaccines
[2] Fonte: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28678778
[3] Fonte: https://news.cancerresearchuk.org/shorthand_story/cancer-vaccines-where-are-we
[4] Fonte: https://www.merck.com/news/moderna-and-merck-announce-mrna-4157-v940-an-investigational-individualized-neoantigen-therapy-in-combination-with-keytruda-pembrolizumab-demonstrated-superior-recurrence-free-survival-in
[5] Fonte: https://www.cancerbiomed.org/content/early/2023/12/29/j.issn.2095-3941.2023.0395
[6] Fonte: https://www.nature.com/articles/s41586-024-08507-5
[7] Fonte: https://www.scientificarchives.com/article/personalized-neoantigen-dna-cancer-vaccines-current-status-and-future-perspectives

